quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Um ano de paz para todos.

sábado, 26 de dezembro de 2009

Tela em decúbito ventral



Óleo sobre tela

De Solivan

Oxigênio

Não quis mutilar um cilindro
de oxigénio enferrujado.
Senti pena
abri-o
e disse
vá mudar nuvens de lugar,
soprar árvores e veleiros
balançar oceanos.

Informe policial

Heroína

O soldado
que o retirou das ferragens
foi condecorado.
A mãe que irá cuidar do tetraplégico
pelo resto da vida, não.

De Solivan

Fragmentos do diário de Ariel

Caminho pela praia
com minhas calças brancas arregaçadas
e chinelos nas mãos
arregaçassem-se as mangas da camisa para trabalhar
e as calças para andar na praia.
Meu olhar coletor
junta conchas,
barcos de pescadores ancorados na areia
gaivotas e velhos casais passeando.
Bares à beira mar,
fechados e sendo abertos.
Minha sombra vai a minha frente,
desliza como um delfim
sobre a areia
abraça os barcos como uma pele
imprime-me neles
na cor deles,
é transpassada por águas
e espumas
que às vezes
chega a meus pés.
Invejo-a, quero também este mimetismo.
Algo no presente
os prédios novos, modernos
restaurantes
placas oferecendo frutos do mar
e crianças brincando
foi me trazendo o passado:
pai, mãe, minha infância, casas de veraneio
passeios, calçadas, ruas, conchas apanhadas,
viagens, shoppings
vitrines, livrarias, cinemas, casas de artesanato
e de artigos de praia, odor de bronzeador.
Sou um homem com ilustrações na alma
ando com ilustrações e passos vagarosos
um banco ao lado de uma árvore
convida-me a olhar a imensidão
sinto-me enorme, sou até aonde
minha visão alcança.
Olho um pássaro no alto, distante
no céu azul com nuvens brancas
e me pergunto
quem é mais livre neste instante
o pássaro lá no alto
com olhos fixos na terra
ou eu de olhos perdidos e livres no firmamento
e neste momento
em que a retina engole o oceano
o céu e a linha do horizonte,
ouço o mar
e o barulho do mar
lembra-me
o som do interior das conchas.

De Solivan

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Velório na Vila dias


De Solivan

Cinema

Gosto de ver cartazes nos cinemas
como se fossem uma exposição,
por um longo tempo olhei o cartaz do filme do Homem-aranha,
que linda a perspectiva, o nadir.
O uniforme entrou em mim até a segunda babuska.
Compro entrada,
será um suvenir.
Entro no banheiro
sinto o perfume do sabonete líquido,
morango,
cai sobre as mãos como calda,
devia ser comestível.
Compro coca
beber coca-cola é uma performance pop,
salgo a pipoca
a deixo com gosto do Mar Morto.

Dúvida nostálgica
entre mentos fruit box ou confetes m&m`s,
Discutem a terceira e a segunda babuska.

Com olhos esfomeados
entro no cinema.

Quero sentir, toco as paredes do corredor,
procuro detalhes bonitos, bebo o néctar dos detalhes.

Como é fresco, algo de templo,
o clima deve ter sido importado de uma montanha tibetana
veio de iaque, avião, navio, caminhão até aqui

Reverente, vontade de nadar, passear como peixe num aquário
sobre as poltronas, passar perto da tela, do projetor.
As luzes me atraem, tenho algo de mariposa, queria morrer na luz.

O filme tem
de movimentos graciosos algo de balé
mas gostaria de ter mais tempo para ver os cenários, a cidade,
acho que as edições são muito rápidas para uma alma contemplativa.
The end
Arranco um pedaço da alma do cinema
e saio,
tirar a alma não mata, alma é como fígado se regenera.



De Solivan

Supermercado(fragmento)

No supermercado
A uva embebeda, a cana embebeda,
cevada embebeda.
Tentam sempre inovar, de novo repetições
tentar inovar sempre é uma repetição.
Tem um pouco de mar
em cada produto
e o mar aqui causa hipertensão.
Pego na gôndola uma maçã
diluída de seus significados, mordo
e recoloco diferenciada, simbólica, engraçada,
porém estou ciente
de que a maçã perdeu todo seu valor comercial.

De Solivan

Zé Limeira e o diabo

Dentro do ano de 1975
Zé Limeira
despediu-se
de seus filhos morenos
com brincos de ranho no nariz.
Eles brincavam no quintal,
sob a sombra da casa,
ossos e gravetos
eram boiadas e cercas.
Estavam ao lado de um cão magro
enrodilhado como caramujo,
todos rodeados pela caatinga.
A mulher da janela
ergueu a mão, porém mais parecia tremer que
dar adeus,
logo voltou a varrer.
Estavam todos acostumados por
herança das gerações de retirantes
anteriores a despedidas.
Zé Limeira
começou sua viagem
pela estradinha longa, reta e empoeirada
entre arbustos secos ásperos e emaranhados.
Corria quando menino
nessas matas de arame farpado
como delfim salta o mar.
Deixava a casa,
mas sua imagem ia dentro dele
forte, se a evocava
trazia a mesma segurança
que sentia ao tocar seu amuleto.
Parecia acariciar
a casa preguiçosa
a porta sempre aberta em bocejo,
as paredes quentes de barro avermelhado
ressequido e rugoso.
Tato e aparência de casca de árvore
sempre envolvida por um ar parado ressequido,
num silêncio denso,
engarrafado dentro deste silêncio morno
moscas de zumbido sonolento.
A lembrança da casa era seu oratório
onde amorosamente colocava sua família.
Um passo após a linha do horizonte
a caatinga clareou.
Tudo pareceu novo,
estranhou aquela paisagem tão familiar
de repente mais brilhante, viva
sua alegria de viajar
incidia como um sol,
deixava tudo mais alegre e claro.
O ar seco empoeirado
filtrado por suas narinas felpudas
caia limpo, fresco em seu pulmão
como água de nascente.
Um pé de espinheiro
projetou na parede
interna do osso da testa
as duas aparições que teve.
A primeira,
quando era criança com suas duas irmãs
atrás da casa,
depois de sua desfolhada plantação de mandioca
no começo da caatinga.
Apareceu a eles uma Nossa Senhora de Aparecida
de gesso
suspensa sobre os espinheiros
aquela gigantesca estátua
nem arqueava os raquíticos galhos,
parecia
uma leve mariposa pousada.
Nossa Senhora de gesso entre nuvens de gesso
pairava sobre o espinheiro
negra, seus olhos parados pintados de azul celeste
mãos em oração
só a boca autômata, movia-se
com voz gutural pastosa
vinda de uma garganta de gesso.
Os bodes passeavam à frente dela
ruminavam folhas, calmos.
Zé Limeira e suas irmãs
não escutaram a mensagem
após os olhos arregalados de medo
captarem tudo, rápido e nítido
e o susto estampar e fixar as imagens
em suas almas.
Um temor tosco de lavrador
em frente de um rei
fez todos fugirem.
Na segunda aparição
anos depois
vindo embora, à tarde
em dia de São João
a caatinga estava avermelhada
sol forte
Zé dançava sozinho na estrada
os pífaros ainda soavam nítidos,
como um radinho de pilha
dentro de sua cabeça
quando viu numa encruzilhada da estrada,
Padre Cícero Romão
também enorme
estampado numa folha calendário
tentou falar com Zé.
Este se conteve o máximo que pôde,
mas o medo dentro dele
tinha vontade própria
mandava em suas pernas
fora possuído pelo medo,
seu medo mais parecia uma entidade
que um sentimento.
Tentou manter-se
olhou para baixo
tentou se concentrar nas datas
seus olhos no desespero
acharam com mais facilidade
os feriados em vermelho.
Procurava distrair-se,
não ousava encarar os olhos do padre,
mas nada adiantou.
Suas pernas possuídas correram
era tanto medo que por mais que corresse
parecia não sair do lugar
depois, sentou-se e acalmou o seu próprio coração
com palavras de mãe para um filho assustado.
E fez um diabinho de madeira
pintou de vermelho, pôs em uma garrafa
se levasse o amuleto
na algibeira de couro e odor de cavalo,
nas missas
benzedeiras e enterros
acreditava que não veria mais santos.
Assim caminhava distraído
numa visão bifocal
via lembranças
coloridas do passado
e a estrada no presente.
Mas as recordações que mastigava
salgadas, cheias de emoções
foram engolidas
a caixa craniana escureceu
ficou somente o que enxergava
quando chegou à BR.
O sempre, mais estéril, presente
geralmente insosso
que só cria sabor
depois de ficar de molho na alma.
E continuou andando no acostamento
seguiu o asfalto como quem anda à beira de um rio.
Como única distração acompanhava
a sua sombra,
movendo-se a sua volta, lentamente
como um ponteiro de relógio
enquanto andava
e após passar por
dias secos, como carne de sol
dias amarelos, desidratados
de raios solares ressequidos
e noites estreladas
de receber estilhaços de nuvens pelo corpo
e beber na palma da mão pedaços de nuvem,
Zé Limeira
nem sente
seus pés escorregarem no suor
das sandálias,
não percebe
os automóveis
que começam a passar rente
em filas coloridas
como bandeirinhas de São João
e os caminhões
que urram e sibilam
estremecem a terra
e bafejam um sopro quente
de borracha e diesel em seu rosto.
Apenas recordações rodam
como um carrossel
um cavalo após outro
cada qual com uma cor, histórias
imagens e sentimentos diferentes.
Paravam ao sabor da sorte atrás de seus olhos
passagens de sua viagem
agora sem ele notar quase no fim.
Primeiro
da sua felicidade
numa pequena rodoviária
das quatro árvores a sua frente
com pulseiras de pedra caiada
do longo pátio, lago de terra
areada e ondilhada
onde flutuam tufos de gramas esparsas.
Nas paredes e vidraças sujas
marcas de pés e mãos
desenhos de caverna
os vidros embaçados
de incrustações de saliva ressecada
das respirações.
Pessoas morenas
andam, comem, dormem.
nos bancos
numa fila hospitalar.
Ouve-se
tosses, conversas, suspiros, gritos, risos infantis
e murmúrios
exalam um cheiro de ansiedade
junto do suor
aguardam inquietos
a viação Careonte.
Lembra depois
da sua alegria infantil
contente só por ver as luzes, cores e movimento
ao conhecer a grande estação rodoviária
com odor de vômito
de estar no meio da correnteza
incerta das multidões,
de seu encantamento
na vitrine
da loja de artigos mágicos
truques de baralho, canetas que desaparecem
chicletes que deixam a boca azul,
imitações de fezes, máscaras de monstros.
Em outra,
de lembranças da cidade e brinquedos,
da mercearia
com redinhas de náilon amarelas expostas
de laranjas ou maçãs,
a gôndola cheia
com frascos plásticos de refrescos
imitando framboesas em azul,
revólveres vermelhos,
elefantes amarelos
causavam a seus olhos
fascínio e avidez de jóias.
Se algum dia,
estivesse na frente de um quadro colorido
sua mente se lembraria
desse momento, desse deslumbre.
Da fome
devido ao cheiro dos pastéis
presos num aquário gorduroso
da lanchonete.
Da sua ereção ingênua na frente
da banca com revistas eróticas, gibis
e palavras cruzadas,
de ver no segundo piso
os ônibus entrarem e saírem
das gengivas das plataformas.
De estar no ônibus
com o mesmo odor de vômito da rodoviária
e assistir à janela
que lembrava uma televisão
a caatinga transformar-se em cerrado,
as vilas
passarem em rápidas manchas coloridas
a tarde incendiar-se
numa monumental abstração
sobre o azul
amarelos e vermelhos orquestrais
um Kandinsky momentâneo
pintado no seu vidro rasurado com impressões digitais.
Depois ir de encontro
à boca da noite,
ver atrás das negras silhuetas recortadas das árvores
um fundo gris enevoado.
Olhar as galáxias das cidades distantes
cintilantes cravejadas no meio da escuridão
depois a casa solitária, misteriosa à frente
sua curiosidade de saber quem mora nela, que fazem
quem lava e estende a roupa
como se chama o cão.
O motor ronronava uterino
seus olhos sonolentos
nublava
e raiava com pétalas agudas
igual ao imaculado coração de Jesus,
as luzes amarelas das janelas
de um casarão entre grandes mangueiras.
Adormeceu quando a paisagem
era completamente negra
submarina.
O ônibus ia imerso, solitário
suas luzes tateavam
no mais abissal e escuro fundo de oceano
visão de seu perispírito
nadando na estratosfera.
De acordar
já atravessando periferias
de ver maravilhado os prédios ao longe.
Lembra
que descansou
em frente de um bar
com hálito de cerveja saindo
de suas boca-porta
de ouvir o barulho gorgulhante
das bolas de bilhar
sendo engolidas.
Que pousou
em postos de gasolina
entre caminhões
e descansou
à sombra de uma placa
de sinalização amarela
e adormeceu, à tarde
ouvindo o trânsito
sobre a braquiária poeirenta
da beira da estrada,
vendo o céu azul
raios brancos de sol
atravessavam a fresta de seus dedos
em seus dedos floresceram estrelinhas de luz.
Da cabeça cheia de água
por causa da sede
enquanto andava
cheia de água límpida
torneiras, cacimbas
copos brilhando como diamantes.
Zé Limeira pensava em tudo isso
quando viu uma placa verde em formato de portal:
Bem-vindos a São Paulo
e ergueu os olhos e vislumbrou assustado
com o mesmo sentimento
de quando viu a enormidade verde, temerosa
do mar pela primeira vez,
as favelas
que subiam e desciam morros
numa planície de casebres
e depois uma longínqua e enfumaçada
linha de horizonte inteiramente feita de prédios.
Parou inquieto nervoso
sentiu fortes vontades antagônicas
queria voltar e seguir
indeciso, perdido
perdeu sua certeza
que era sua bússola, sua segurança.
Desorientado
sentou no acostamento e esperou
sua alma acalmar e se decidir
o asfalto fervia, soltava seus vapores invisíveis
e sufocantes,
o lixo das favelas cheirava
como um arroto
o trânsito intenso, rente
dava a mesma vertigem
o mesmo medo da morte
de estar à beira de um precipício.
Foi quando o diabo apareceu
um diabo nu, em vermelho vivo lustroso
como madeira polida, lambuzada
com óleo de peroba
seus cascos fizeram um barulho
de tropel de cavalos
ao caírem no acostamento,
Zé sentiu um cheiro
que sentia quando disparava
sua espingarda quarentinha
e viu-se, face a face, com o capeta
de guampas lisas, pontudas,
negras, compridas, luzidias
como berrantes.
- Entra. - Falou o diabo,
e ofereceu suas tentações
com uma voz radiofônica de um programa policial
amplificada e grave
e gestos de garçom,
apontando para a auto-estrada que ia dar
em São Paulo.
O som retumbou dentro do peito
de Zé Limeira
o medo
rompeu os comandos medulares
ficou paralisado e mudo,
pássaro hipnotizado por cobra luzente.
O diabo não é condescendente como os santos
e sem desaparecer
esperou uma resposta, aguardou até que
Zé, trêmulo começasse a falar
com a cabeça baixa
gacarejantes sons repetitivos
sem poderes para dizer não
como se tivesse uma arma apontada para sua cabeça.
O capeta
diluiu-se no ar
só após o contrato
ser tremulamente assinado
então, Zé jogou
o diabinho do amuleto fora
preferia ver santos
e retornou para a casa.
Pode ter vendido a alma,
mas não sua vida
sua vida ainda
pertence a ele
e continuou
a viver com singeleza
até ser recebido
em um auto pela Compadecida.

De Solivan

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

A beleza e o tempo




De Solivan

Pesadelo

Garotos brincam
de pintar pessoas
de vermelho
com seu fuzil.

De Solivan

Oração pela santificação do sublime

Senhor
das humildes e singelas
estátuas santificadas
que dão fé e milagres ao povo
concedamos pedir graças ao magnífico.
Oh! Virgem Maria sublime de Leonardo da Vinci.
Rogai por nós.
Sagrada Família de Rafael.
Rogai por nós.
Os Profetas de Aleijadinho.
Rogai por nós.
Oh! Cristo que veio do maculado
coração de Caravaggio.
Rogai por nós.
Auto-retrato de Frida Kalo que parece
dolorosa MARIA sem concepção.
Rogai por nós.

De Solivan

Ribeirão Preto

Hopper,
foi minha primeira associação
quando entrei no hotel.
Lembra um quadro de Hopper.
O corredor escuro
parece levar ao infinito
como num jogo de espelhos
e tem odor de gavetas cinqüentenárias,
um túnel
mal iluminado desabitado
de fiação exposta
os fios, riscos coloridos
são as únicas alegrias do teto.
Passo por inúmeras portas grandes, insondáveis
esses vultos negros
perfilados guardiões
repetiam-se em ecos visuais
esfaqueei um deles no quadril
com a chave
e entrei
no meu quarto antiquado
com porta chapéu.
Móveis semelhantes à alaúdes
escuros, gigantescos
fazem me sentir pequeno.
uma escova de dente amarela
cheia de pó
sobre o guarda roupa
deixa uma impressão
de objeto abandonado numa cripta.
A janela dá para velhos telhados
e caixas d‘água com musgos ressequidos
aprisionados num retângulo
entre o prédios do hotel e outro,
depois dos telhados cor de dunas
com manchas negras
dia salpicado de noite,
flamam num oásis verde as árvores da praça.
Após esquadrinhar quarto e vista
saio
percorro novamente o corredor, sempre sozinho
percebo que acaba numa vidraça longínqua
hoje está azul, tingido pelo céu
porque o vidro
tem a cor camaleônica das transparências.



De Solivan

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Luwak cocaine

Poema para Mário Bortolotto


Engulo coca, foda-se a condicional.
Com tacadas mato a caixa de correio,
hipotecas no chão, vendo a televisão
e viajo ouvindo os gritos do rock roll.

Jogo latas de cerveja no asfalto.
Atiro em placas, baleio um outdoor,
atropelo cães, fecho e ultrapasso.
Meu carro cheira a baralho velho.

Dou carona para uma puta estradeira.
Num motel de piscina suja e vazia
e o luminoso com uma letra queimada,
bebo, fodo e vejo desenhos animados.

Não olho a porra do Gran Canyon.
Quero gasolina, num velho posto,
bebo tequila, encaro a garçonete,
jogo pinball, roubo um ray bam.

Esmagando o acelerador cruzo desertos,
cidades empoeiradas,cemitérios de aviões.
Em Las Vegas vendo ovos e sou rei.
Livre, a falta de esperança liberta.



De Solivan

sábado, 5 de dezembro de 2009

O circo de Hélio Leites

Homenagem a Hélio Leites.




De Solivan

Patinação artística

Gosto de tocar um quadro com as mãos,
deslizar ,passear
sobre um cartaz de filme,
um retrato.
Tocar não é um ato bárbaro,
é uma carícia,
como arrumar o cabelo de quem se gosta.
A vontade de tocar e farejar uma obra
é um elogio,um doce elogio.
Sinto não poder abraçar a música.

De Solivan

Na palma da mão estava escrito chaga

Na palma
da mão estava
escrito chaga,
num corte subjetivo
a palavra
na palma da mão
a negra palavra
nua sob a pele.
Quando vestida
pelo significado
mostra-se rubra
ferida em carne e dor viva.

Na palma
da mão estava
escrito chaga.
A palavra,
a palavra abre-se vermelha
uma cortina de veludo
ao espetáculo
rasga-se num
sorriso malabarista e suplicante
de um palhaço
e tinge de sangue seus lábios
batom de seu sorriso ruge.

Na palma
da mão estava
escrito chaga.
A palavra, a palavra dói
lateja na palma da mão,
dói teu olho na palavra
em minha palma,
teu olho,
metáfora de teu dedo
em minha chaga.


De Solivan

Ode a minha câmera fotográfica

Como é bom ter uma máquina capaz de apanhar
um momento delicado como um sorriso de filho,uma paisagem.
Uma máquina fotográfica não machuca o tempo,
o colhe sem incisões, sem o entalhar ou pintar,
reproduz apenas com uma luz doce,tão suave,
toca um segundo com tanta delicadeza e ternura
que não o machuca,o deixa inteiro,
como a mão de Gandhi segurando uma borboleta azul
e nos permite emoldurar uma lembrança,eternizar um segundo.

De solivan

terça-feira, 1 de dezembro de 2009



De Solivan

Cavalo dócil

Vida é um
cavalo dócil
que enlouquece
ao sentir o cheiro da velhice
sobre suas ancas.

Solivan

Estante

Colo dos poetas,
cavalo de cedro que leva lápides
teu cavalgar é no tempo, não no espaço.
Minha alquimia,
escolho uma poção na estante e bebo com os olhos
até ficar sábio.
Como seios de Artemis em Éfeso,
embala
edições reencarnadas
de significados poliglotas.
Livros com pinturas fotogênicas,
de estátuas esmagadas
como rosas dentro de um diário.
Meu templo
com um marcador de páginas,
esta faca de ritual
abro talismãs,
búzios de couchê
e leio vísceras.
Como num ritual crematório
espalho-me sobre este oráculo
porquê o pó
sobre suas prateleiras
é feito de minha pele.

Uma carranca protege sua proa.

De Solivan

Luz bonita

Noite, a luz veio bonita e de aço, esmagou o índio bêbado no meio do asfalto pareceu luz de pegar, brincar, levar para as crianças. Mergulhou no vidro, água de rio, de novo menino nadando no rio.
Viu Iracema submersa.
Susto, o índio surge do escuro, emoldurado pelo pára-brisa, depois da curva, com um sorriso assustador de quem olha algo belo. Só vê a face iluminada, o resto era negro, claro-escuro. O baque, o sorriso contra o pára-brisa, engano de pássaro pensando que vidraça era céu. O cheiro defumado do bugre manchou o odor caricatural de flores do campo do aromatizador, e continuou, não em uma fuga de onça, fuga da delicadeza, a feminina fuga assustada do veado.
Outro índio no acostamento viu o carro vindo, aviso de araponga, mas grito não empurra. Dos três o único que sentiu dor, sentiu nele o estalo de taquara das pernas que o outro quebrava, o rasgo na barriga, a cabeça contra o vidro, e o cair de bicho grande abatido no acostamento, odor de anta carneada, o morto cheio de urucum. Jogou com raiva uma pedra inócua, pedra de algodão, de pluma no carro que sumia, pedra que se dissolveu no escuro.

De Solivan

De como as coisas adquirem uma nova beleza

O novo resplandece, tem odor
há nele uma aura contemporânea.
Mas os anos que parecem apagar seu brilho,
deixá-lo inútil, feio e inodoro
formam as décadas
e elas vão sobrepondo em camadas
pacientes e cuidadosas,
nobreza sobre o antiquado.
Uma nobreza que atinge o sagrado.
Qualquer fragmento milenar
exerce um fascínio que beira a idolatria.

De Solivan