sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

O quadro de Satoro

Já vem contido semanticamente nos genes da palavra Satoro,
sua cor o tipode seus olhos e o formato do rosto. E veste a trocável
descrição últimas tendências. Era manhã e tilintava um copo de suco de
laranja em sua mão, sua bem cuidada mão. Levou-o à boca e
ficou sentindo a borda fria do vidro tocando a ponta de seu nariz.

Sentia-se sonolento, preguiçoso, em descompasso com a mesa pomposa onde brilhavam cristais, cores, pães e frutas, dispostos com tal perfeição que mais pareciam arrumados e iluminados por um fotógrafo.
Satoro tinha uma ocidental displicência, que era mais teatral que real, porém sentia prazer na pele deste personagem e o vestia várias horas por dia.
Uma ereção distraída inflou durante seu tardio café da manhã e passou quase sem ser notada, se espreguiçou, depois estralou os ossos do pescoço como um boxeador. Com uma voz pastosa murmurou para si, na língua ainda um mau hálito agora sabor laranja.
- Preciso de temas para outra instalação, temas.
O suco tinha um sabor insosso apesar de perfeito, pela falta de um ingrediente em Satoro, não no suco, chamado sede. Ele preferia prestar atenção nos bambus atrás da enorme vidraça. Seus olhos como dedos acariciavam o verde gracioso dos bambus num preguiçoso exercício de relaxamento, como pés nus brincando na areia.
- Preciso trabalhar. Falou sua voz interna, mas depois dos olhos sentia-se vazio e a frase ecoou sem imagens numa escuridão cavernosa própria para hibernar.
A repulsa desenhou-se por um segundo no rosto de Satoro, porque ele lembrou de quando teve de trabalhar com seu pai (que mantinha um incomunicável e amarelo-canário Van Gogh prisioneiro) na abstrata função de filho. Do seu estilo metódico amargurado com cocaína. Foi em um dia claro, às 10:00 horas, que abriu os lábios, e de sua boca libertou uma revoada de pássaros-palavras pelo escritório do pai.
O copo de suco, foi o único objeto tocado daquela intrincada mesa. Satoro levantou-se, deu alguns passos e foi surpreendido pelo soco, pelo tiro de uma idéia, havia criado uma Madona com o menino. Sentiu-se cambalear, apesar de não tê-lo feito. Ainda desnorteado, entrou no seu ateliê enorme, que mais parecia uma funilaria, acendeu a solda do seu rústico pincel com ponta de fogo, mas não conseguiu trabalhar em suas instalações. Deitou em seu divã e começou a imaginar o quadro, seu pensamento pincelava, melhorando alguns detalhes, mudou um pouco a disposição do conjunto e retirou as auras. À tarde, a tela estava pronta. Satoro havia trabalhado como um pintor, a diferença é que tudo ocorreu dentro do seu crânio, pois ele nunca havia desenhado ou pintado.Tudo que fazia era de uma indisciplina férrea e obrigatória. Mas o quadro estava tão claro em sua mente, tão maduro, que chegou a pensar que conseguiria fazê-lo.
Esfregou seu mágico cartão de crédito, fez três pedidos e logo apareceram, telas, tintas e pincéis. Porém, logo no primeiro risco, o auto engano se desfez. Mas sua alma intransigente, paternal obrigou-o a terminar o quadro. Então pintou rápido, grosseiramente, com raiva, era uma criança, executando um castigo da pior forma possível. Quando terminou, rosnou:
- Siamesco, grosseiro, besuntado, feito por um orangotango!
Foi ao banheiro irritado, sujou o pênis de tinta, e sua baixa auto-estima narcisista o fez ver um auto-retrato dada refletido na água do vaso sanitário. Arrumou o cabelo num gesto automático.
Quando voltou esfaqueou e cremou cerimoniosamente a pintura, sem notar que havia nela qualidades. Seu pincel tinha as chicoteadas emotivas de um Van Gogh e suas figuras a singeleza primitiva de Chagal.
Angustiado, achou que seu talento não tinha braços, que seus desenhos eram tão trêmulos e caricaturais como um arremedo de passos de um aleijado. Sentiu-se tão impotente e sem talento para transferir a pintura que seus neurônios haviam feito dentro dele, que desistiu da tela.
No dia seguinte voltou a trabalhar na sua obra intitulada “Andaimes”e agendar viagens e exposições. Mas o quadro era a imagem que separava um pensamento do outro. Muitas vezes, flagrou-se perguntando obsessivamente como fazer, como fazer! E chacoalhava a canina cabeça encharcada com a imagem, na tentativa de livrar-se do pensamento fixo. Até que sem poder mais resistir, entregou-se ao perverso médico oriental, metódico e racional que havia dentro de si, e que suplantou seu artificial e displicente monstro bondoso ocidental.
Tinha agora a obrigação de encontrar uma solução. Passou uma semana sorumbático, inquieto e arqueado, os sons de seus passos mudaram sob o peso da obsessão plúmbea.
Satoro encontrou varias soluções milenares e contemporâneas, mas nenhuma que fosse completa, que resistisse ao interrogatório de sua autocrítica. Teve acessos de raiva, insônias, pesadelos coloridos com soluções distorcidas, enxaquecas. O quadro era uma irritante e magnífica ave dentro de sua cabeça, querendo nascer, mas o ovo de seu crânio era demasiado duro. E seu talento não se dilataria para um parto normal, mamífero entre seu indicador e polegar.
Quando as soluções começaram a ser repetitivas e irritantes, cobra mordendo o próprio rabo, resolveu buscar ajuda nos livros, e não só na razão. Após folhear e esfaquear nervosamente alguns com marca páginas, abriu um sobre o Renascimento. Ao ler que atribuíam o anjo da esquerda que figura em o “Batismo de Cristo” de Verrocchio, a Leonardo, emergiu a solução, a certeza , o salto de alegria. Ao comemorar gritou em inglês rasurado de japonês.
- Mas é claro, é isso mesmo, pagar um pintor, Satoro, um pintor, é isso mesmo!!! - Inquieto, tentou repassar, analisar a idéia com calma, mas o fez em meio à bagunça da euforia.
- Pagar um pintor, direi em vermelho e ele pintará vermelho, minha língua será meu pincel, pedirei um rosto suave e ele fará um rosto suave, isso, é isso, é isso! - Pensou em falar em japonês, mas dessa vez não se permitiu, o êxtase já havia passado.
- Uma heureca, uma heureca. - Disse, adjetivando a palavra e continuou.
- Só preciso achar alguém com talento, alguém que tenha a técnica que me falta. Nada de escuso muito pelo contrário, na mídia, na grande mídia, daqui em diante me dedicarei apenas a criar, outro fará o trabalho e trará para eu assinar.
Amigos das galerias, logo acharam os candidatos que Satoro precisava. Após ver cópias que cada um fez de pintores renascentistas, como quem examina um currículo, assinou um contrato com dois pintores. Porque gostou dos corpos que um pintava e outro, pela beleza radiante que conseguia dar às vestes.
Os três trabalharam por meses, no quadro, do desenho inicial e composição até a última pincelada. Satoro agia como uma caricatura de um diretor de cinema, nervoso, porém extasiado com a alegria de poder exprimir-se, sem permitir opiniões, ordenava: quero mais serenidade neste olhar, que seja mais Rafael, o menino não precisa ser obeso, o azul é mais vivo, põe mais vida neste azul.
Mas chorou abraçado com os pintores constrangidos, quando a tela ficou pronta. E assim que ficou só, contemplou o quatro extasiado. Olhou o fundo escuro como de Caravaggio, onde só aparecia um beiral de porta marrom, que emoldurava apenas penumbra, um beiral que nem termina, dilui-se no escuro. No chão de terra, serragem e alguns instrumentos de carpintaria lustros pelo manuseio, indicavam que aquele lugar era a carpintaria de José. Uma luz suave perolada de poeira, caia sobre Maria. Na sua face em “sfumato” de Leonardo, pairava uma preocupação terna.Vestia véus azuis, vivos azuis de Rafael sobre a roupa vermelha. Ela está em pé e olha para as suas nãos estendidas e iluminadas, para seus dedos soltos porém cuidadosos, como quem recolhe um frágil filhote de pássaro ferido. Suas mãos reverentes estão um tanto viradas, porque querem mostrar para um observador, algo muito sagrado, que seguram a mãozinha dolorida de seu filho. O menino está nu, quase de lado, seu rosto voltado para Maria, tem um olhar carinhoso que tenta preservar a mãe. Mas de esguelha, parece que vemos no lábio inferior um tremor de choro contido. Ele ergue seu braço e pousa sua mãozinha sobre o ninho dos dedos maternais, e mostra na ponta do dedo indicador um espinho.
No canto direito em preto o nome do quadro “premonição”, e a assinatura. Satoro lê seu nome como se fosse a coda de uma sinfonia. A sensação que tem ao admirar a sua obra era de quem escuta encantado, uma sinfonia. Sentia no ar os harpejos delicados e fluidos dos desenhos que saiam da tela. Podia até mesmo pegar cachos das notas musicais que se esfarelavam entre seus dedos com a sensação tátil de um pó dourado.
Sente também, uma trindade de tempos, porque o quadro não está preso a um presente estático. Há nele uma impressão, que alguns segundos antes, o menino havia chamado a mãe. O futuro é acorrentado pelo título, é incluso na composição. Quase que justaposto com o presente, um futuro tão imutável quanto o passado. Na delicadeza da cena mostrada, está o momento da cruenta crucificação, com cheiro do cordeiro morto, couraças lambuzadas de sangue, e soldados limpando as mãos avermelhadas nas vestes.
Satoro foi matéria em revistas de arte, participou de programas televisivos, falou sobre sua próxima criação: Leda, em que Zeus ao invés de cisne é um pavão. Causou polêmica, foi odiado por aquele tipo de ódio frívolo só encontrado em alta costura e na arte.
Era uma tarde de um domingo tedioso, quando pegou sua cabeça decepada na capa de uma revista semanal, e engoliu alguns elogios diluídos em ressalvas, mas como não estava acostumado com este tipo de embriaguez sentiu vontade de dirigir pela via rápida vazia e extravasar seu sentimento de poder.Tudo parecia estar imobilizado, só o leão de sua alegria andava inquieto, rondava as grades das costelas. O resto eram blocos enormes e compactos de prédios silenciosos, estrada e céu. De repente, tudo girou em rasuras abstratas, as cores vibraram ao som de uma semicolcheia de fá. O carro felino caiu em pé. Satoro não teve tempo de sentir medo, sentiu antes uma sensação de bem estar, os milionésimos de segundos pulsaram nítidos, perceptíveis. Mesmo a pancada na cabeça foi indolor quase prazerosa. Mas o sangue espirrou no pára-brisa trincado como que jogado por Pollock.
Satoro ficou desacordado sobre o puff branco do air-bag atrasado. No cd, um intérprete de Chopin, ainda datilografava no piano.
O acidente ocorreu quando o mundo ainda mastigava-lhe, sentia o sabor estranho de sua obra, ou melhor, da execução de sua obra. Rasgava-o com seus caninos, acariciava com a língua, e triturava com os molares.
Estaria tudo resolvido se Satoro estivesse morto. Mas ele não morreu, ficou em estado de coma, causando ânsias, porque não houve a resolução, a digestão da morte.
Não se pode esquecer ou glorificar Satoro. Tudo ficou num meio estado, onde nada se define.

De Solivan

Nenhum comentário:

Postar um comentário