quinta-feira, 30 de agosto de 2012

O dia que aprendi a voar(um conto infantil)



O dia que aprendi a voar


Acho que é feito de varinha de condão o botão que liga a TV, porque quando giro o botão, num gesto mágico, aparecem desenhos de bichos que falam e andam como nas fábulas. Deito no sofá magrinho e ossudo da sala, para assistir um cavalo vestido de zorro que corre para salvar uma moça em uma diligência desgovernada, puxada por seis tartarugas, depois um gorila que vive em uma vitrine, e o episódio que o Fred Flintstones inventa um automóvel movido a peixe-elétrico.
Quando começa o jornal, me espreguiço e tenho a ideia de tirar o botão da TV e colocar em uma revista em quadrinhos. Tento ligar o gibi, mas não funciona, os desenhos não se mexem. Largo minha experiência no chão da sala e vou espiar a ovelha que se esconde do lobo na cozinha, ela parece uma nuvem, sempre escondida atrás do fogão de lenha.
Abro a janela e vejo a cidade de Dois Vizinhos. Moro em um apartamento em cima de um posto de gasolina. O meu pai é uma estátua de pedra e está no pátio atendendo um carro de corrida, o formula 1 do Emerson Fittipaldi que estacionou, pediu para abastecer, foi a para a borracharia calibrar os pneus e saiu ultrapassando todos os outros carros.
Sinto vontade de sair, desço contando os degraus 1,2,3,4,5,6,7,8,9,10,11,12,13,14. No quintal persigo uma fada com asas de borboleta 88, a sigo até quando ela foge para o bosque das sete árvores ao lado do prédio. Tenho medo de entrar, porque neste bosque se esconde um lobisomem com corpo de chipanzé e cara de cachorro louco. Corro com medo, só me sinto seguro quando subo no colo de meu pé de cinamomo, nele salto de um lado a outro, faço de um galho meu cavalo, dali vejo a maior das sete árvores do bosque, é seca e depenada, mas tão grande que pousam nela, além dos passarinhos, aviões e anjos da guarda.
A estibordo noto meu tio Gelfe, o caçador. Aparece furtivo como um coelho da Páscoa, rondando com sua espingarda um tesoureiro, passarinho que tem a cauda parecida com uma tesoura e estava no último galho do pinheiro. Meu tio se aproximou, fechou um olho para ver melhor, e fez sua espingarda dar um grito, o tesoureiro caiu como uma lágrima. Como não vi sair nada da espingarda, nem uma pedra como sai do estilingue, acho que foi o barulho que derrubou o passarinho, machucando o ouvidinho dele, que era muito pequeno para um barulhão daqueles. Desci do cinamomo e o apanhei do chão, ele não sabia mais voar, não sabia mais cantar, nem seu coração sabia bater. Soube que estava morto. Como esta tal de morte deixa as coisas burras!
Meu tio caçador disse que estava muito atrasado, e que eu podia pegar o passarinho, porque ele precisava ir atrás de um tubarão-branco que estava escondido naquele mato, para tirar da barriga dele com uma cesariana, os anões, índios e crianças que tinha comido lá na cidade Sul. Eu já tinha tentado muitas vezes pegar um passarinho com a mão, mas eles sempre fugiam quando eu chegava perto, era como tentar pegar uma música. Fico maravilhado por conseguir segurá-lo e descobrir como era seu olho, vistorio seu bico, abro e analiso suas asas, depois o coloco com cuidado no chão, e faço uns feitiços, digo três vezes: te benzo e te curo com rabo de burro, e faço o tesoureiro ressuscitar. Como ele fica muito agradecido me pede para fazer um pedido. Respondi que desejo apreender a voar. O passarinho me falou que seria fácil, porque já tinha ensinado isso a todos seus filhotinhos, e logo começou a me dar lições de como bater os braços, depois de algumas tentativas corremos pelo pátio, e antes de chegar à rua, consegui agarrar o vento com minhas mãos e levantei voo, fui subindo, subindo, sobrevoamos os telhados, passamos a praça, fomos até o fim da cidade, paramos para descansar em um fio elétrico. Assim que o céu começou a ficar colorido pelo entardecer, voltamos para casa voando. Entrei no apartamento pela janela do meu quarto.


Texto e ilustração de Solivan

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Buquê feito de flores de giletes e agulhas



A noiva tinha um
buquê feito de flores de giletes e agulhas,
e algema nas mãos,
ninguém quis apanhar, ninguém quis.
Hoje as flores de giletes e agulhas
estão em sua sala triste,na estante, ao lado da tv
dentro de um vaso quebrado.
Esta lá a muitos anos.



Solivan

segunda-feira, 13 de agosto de 2012


A desconstrução do boi

Matar
o martelo afaga a testa do boi
bem entre seu olhar negro e bondoso
cheio de estrelas brancas
e a faca procura um resto de vida
escondida
dentro do seu pescoço
e como um sopro frio
apaga as estrelas assustadas
no olho do boi.
O corte tem um gosto
oxidado e gelado da lâmina
língua abusada metálica dentro da carne.
Do talho
ubre de ordenhações rubras
saem abstrações brutais
de um coração se debatendo
caem vermelhos, brilhos, lampejos
sobre o alumínio
com digitais e moscas verdes.

Estremecimentos
o sangue abundante acomoda-se
aninha-se
transborda pastoso, calmo.
Morte
ainda sai um colar de rubis
no fim lágrimas de um olho vazado.

Estaquear
erguer no galho da cabriúva
a rês de cabeça para baixo
quatro cascos suspensos
pelas pulseiras rudes
de corda de sisal
estranha flutuação de alma



Corear
arrancar o branco
colorir num processo inverso
de retirar
deixá-lo rascunho
de boi a crueza de um esboço
vermelho, inconcluso
riscado de nervos brancos.
Pendurado
ante o matagal enrediço rasurado de inverno
a suave sombra dos ramos
parece arder sobre a cor carne-viva
como mão áspera sobre queimadura.

Decepar a cabeça
pô-la sobre a mesa
o sangue procura os veios das tábuas.
Um corte no abdômen
abre-se num fácil sorriso
e vomita intestino pardo e fedido.
Na bacia.
após o parto
o coração dorme
sobre as vísceras.
O boi morto ainda adula
seu odor de presa
deixa o ar quente e ensebado
e espalha felicidade
moscas varejeiras zunem
coroam os coágulos
como esmeraldas ávidas.
O rabo do cão sorri.
Um menino, pernas e braços finos
magro de barriga grande
olha o pai
com um sorriso atento,
dentro dele uma alegria inocente de oncinha.

Carnear
a faca apaga
os membros dianteiros
deixa no lugar a terra que se escondia
atrás deles.
Abre-se a espinha.
Os posteriores ficam balançando enforcados
após recortados,
retirados
restam dois cascos, dançarinos
de um boi invisível, desconstruído.


Poema e ilustração naif de solivan