segunda-feira, 30 de maio de 2011
Sonhos ante a vitrine da livraria
Chuva,
corro para frente da livraria.
A chuva cai
como cortinas de miçangas da platibanda.
Um frescor cola na pele desprotegida
do rosto e braços.
Dá vontade de ficar nu.
Olhos ávidos de desejo
na vitrine da livraria,
livros com fascínio de jóias.
Vontade de assaltar a livraria
andar livre entre as estantes
encher-me de poesia com gula
sem critérios.
Eu sempre tão comedido
entre estas estantes
sedento e tendo que
contentar-me apenas com um ou dois goles.
Pegar o que quisesse
um bárbaro saqueando.
As mãos livres a colher
maduros e suculentos
livros de fotografia
de fauna e flora.
Filosofia, sobre pintores
romances e pornografia.
Pelo fundo, teria que entrar pelo fundo.
Que felicidade
engolir todos,
estrebuchar em cima dos livros,
sentir a segurança da quantidade,
folhear todos com o polegar
e ouvir um barulho reconfortante
parecido com o de maços de dinheiro
e cheirar aquele arzinho de livro novo
novinho, novinho.
Meia hora
meia hora de delírio.
Nuvens já dissolvidas
apanho um último estilhaço de nuvem na palma da mão
e lambo o gosto insosso de céu.
Poema e ilustração Solivan
segunda-feira, 23 de maio de 2011
A desconstrução do boi
Matar
o martelo afaga a testa do boi
bem entre seu olhar negro e bondoso
cheio de estrelas brancas
e a faca procura um resto de vida
escondida
dentro do seu pescoço
e como um sopro frio
apaga as estrelas assustadas
no olho do boi.
O corte tem um gosto
oxidado e gelado da lâmina
língua abusada metálica dentro da carne.
Do talho
ubre de ordenhações rubras
saem abstrações brutais
de um coração se debatendo
caem vermelhos, brilhos, lampejos
sobre o alumínio
com digitais e moscas verdes.
Estremecimentos
o sangue abundante acomoda-se
aninha-se
transborda pastoso, calmo.
Morte
ainda sai um colar de rubis
no fim lágrimas de um olho vazado.
Estaquear
erguer no galho da cabriúva
a rês de cabeça para baixo
quatro cascos suspensos
pelas pulseiras rudes
de corda de sisal
estranha flutuação de alma
Corear
arrancar o branco
colorir num processo inverso
de retirar
deixá-lo rascunho
de boi a crueza de um esboço
vermelho, inconcluso
riscado de nervos brancos.
Pendurado
ante o matagal enrediço rasurado de inverno
a suave sombra dos ramos
parece arder sobre a cor carne-viva
como mão áspera sobre queimadura.
Decepar a cabeça
pô-la sobre a mesa
o sangue procura os veios das tábuas.
Um corte no abdômen
abre-se num fácil sorriso
e vomita intestino pardo e fedido.
Na bacia.
após o parto
o coração dorme
sobre as vísceras.
O boi morto ainda adula
seu odor de presa
deixa o ar quente e ensebado
e espalha felicidade
moscas varejeiras zunem
coroam os coágulos
como esmeraldas ávidas.
O rabo do cão sorri.
Um menino, pernas e braços finos
magro de barriga grande
olha o pai
com um sorriso atento,
dentro dele uma alegria inocente de oncinha.
Carnear
a faca apaga
os membros dianteiros
deixa no lugar a terra que se escondia
atrás deles.
Abre-se a espinha.
Os posteriores ficam balançando enforcados
após recortados,
retirados
restam dois cascos, dançarinos
de um boi invisível, desconstruído.
Poema e ilustração de Solivan
segunda-feira, 16 de maio de 2011
Confissões de meus laivos infantis
Experimento
as possibilidades sonoras
das grades,
seus arpejos combinam com os latidos dos cães.
E batuco em garrafas de uísque
quando novas,
Acho
seu som é belo aquático, futurista.
Também ando com a garrafa no ouvido.
Tem um gorgolejo bonito,
metálico.
E ainda sobre garrafas de destilados,
procuro mas vazias
as pequenas esferas de vidro ou de plástico
que ficam no gargalo.
Coleciono, as retiro como se estivesse revirando uma ostra,
Sinto-me coletando perolas.
Também conheço
o interior do mar pelas peixarias.
(Ando estranhamente em uma peixaria,
passeio como em um museu marinho,
como se os balcões fosse redomas )
E se compro peixes sujos limpo demoradamente,
os disseco com uma faca de mesa
como faço com as frutas.
opero peras e maças,tiro as ovas do mamão,
gosto examinar o interior
o mesocarpo, a semente.
Experimento todas as frutas desconhecidas que encontro,
Cuspo as amargas,
frutas são como pessoas.
E sempre, sempre faço incansáveis procuras antropológicas
nas casa que visito ,nas cidades,
pelos cardápios
e gôndolas de supermercado.
Poema e ilustração
Solivan
segunda-feira, 9 de maio de 2011
Interação no Masp
Farejei
o mais perto que pude
o um quadro de Van Gogh,
tem um rico cheiro de roupas velhas, de suor
e tabaco.
Tem ainda o cheiro quente de Arles
e do quarto fechado e quente
em que foi feito.
As telas de Picasso cheiram a touro.
É importante, é importante
farejar,
Todo o quadro ou foto
toda imagem se boa,
tem um odor rico.
Se o cheio é ruim, a imagem é ruim.
Se puder, olho para os lados
e se não tiver ninguém
lambo
gosto de sentir o gosto das tintas.
Sinto necessidade de engolir
um pedaço da Capela Sistina.
E escuto,
coloco meu ouvido bem pertinho
batuco com os dedos,
tamborilar é atávico no homem
ouço o pulsar,
é maravilhoso sentir o coração de tela reviver.
E sim, toco ,toco porque
é o toque que transmite a compreensão.
O toque é um carinho,
não é um vândalo quem sente a necessidade de tocar um quadro
mas sim aquele que está sublimado.
Poema de Solivan
Ilustração de Van Gogh
segunda-feira, 2 de maio de 2011
A leveza o êxtase e a rudeza
A Artur Rimbaud
A Leveza
Vai pela estrada Rimbaud, lendo a paisagem
estava escrito no caminho de pedra
disposta em escamas de víboras
que seu andar trôpego de alegria
será barco bêbado sobre um rio
só por Dante navegado.
E no trigo com letras manuscritas
dos monges medievais lia, numa página com
iluminogravuras.
- Minha semente mastigou a terra, fiz-me de terra
e a espiga fulva e relicário onde aguarda o pão.
Nas faces dos ceifadores, o texto
linhas da vida
como palma da mão exposta
nas rugas profundas, rendas ou raízes
em volta desses duros olhos.
Viu o local onde um dia perdeu-se
traduzir-se em ponto de referência
como água vertida em vinho
e seu olhar era criança, despreocupada
num doce balanço sob as páginas da divina comédia.
O êxtase
Vai pela estrada Rimbaud
vê a montanha mergulhar no céu e tingir-se de céu,
membro dentro de um céu fêmea,
e entra num bosque
que se aninha nas suas encostas
e bebe um ar místico
a névoa de tule pintado por Botticelli
estampado com canto de pássaros,
recende a ramagens
a âmbar das resinas e ao suor dos faunos escondidos.
Desce a nascente
e com gestual de tigre
lambe a própria imagem no espelho d’água
enquanto a língua sente o gosto
do bosque diluído em água
dentro dele formam-se imagens
primeiro, Narciso
um instante de escuridão
depois a flor branca.
Então volta com passos crocantes
sobre as folhas secas
deita-se sob os álamos
olha as copas transpassadas
por feixes de luz amarela
com a neblina fulva a passear sinuosa dentro deles
nos cimos tremeluziam
enxame de estrelinhas
pinceladas uma a uma pelo sol.
Fecha as pálpebras quentes
vê então um São Sebastião
de seu corpo magnífico
nu, leitoso, cheio de luz
púbis exuberante, negra e cacheada
alvejado por flechas
de onde o sangue verte elegante como uma lágrima
com rosto pendido e olhar de súplica
veste apenas a sombra das folhas
sob a pálida pele do peito e das coxas.
A rudeza
Vai pela estrada, Rimbaud
no peito o ouro sem metáfora
bebe a si próprio no suor que cai dos seus lábios
e a fome come-lhe o corpo.
O calor faz a alma presa no corpo agitar-se feito um feto inquieto e febril
logo vai despetalar a roxa perna.
No quarto
de odor enfermo como hálito de um celibatário
com a angústia de um pássaro sem asas,
seu coração já coto debate-se ante o céu azul visto da janela.
Poema e ilustração de Solivan
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