segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

O quarto do musico morto e sua comparação com um mundo antisséptico.

Para João Cabral de Mello Neto.


Na mesa, seca de toda
a música está a flauta
eviscerada,em silêncio
como um canário morto.

Não há mais o sopro
de erva-doce e manjericão
que tem o som
das flautas vivas.

No dentro da flauta
um deserto salino
um branco osso de
mar descarnado de água

Uma imensidão vazia
de planeta deserto
Se parece caber na mão
é porque denso, de sol morto.

Mas este vazio na flauta
é um vazio que se sente
o vazio da barriga vazia
o vazio cheio de fome.

Ou mais agudo sentir
de dor mais aguda
mas sem o estridente grito
a dor sem ganido de um cão mudo.

É também o oco da flauta
um oco de osso de pássaro
calcificado, limpo de carne
pelo minucioso urubu e o carcará.

Se ainda identifica-se
a forma flauta sobre a mesa
é como identificar flor
destilada de seu perfume.



A areia que invadiu o
quarto não é areia, é miragem
de areia e por ser miragem
por não existir é apenas sentir

Mas por ser forte este sentir
é fraco para esta areia
descrevê-la miragem cabe
mais no estojo da palavra alucinação

Com a dura e real presença
que tem a alucinação
de cromar a espinha
ossos com frio metal do medo.

Por ser de tal matéria
esta areia entra onde areia
se real não poderia inocular-se.
Desrespeita a areia o sólido.

Sente-se tal areia
não só sobre os móveis
mas no centro das coisas
como sal entra na carne de sol.

Tinge as páginas dos livros
de um amarelo de desertos.
e mais no centro ainda
porquê no âmago do homem.

No coração pulsa
sangue com areia
lixa o peito que a respira
nos pulsos arranha o que articulação.

A voz com areia é áspera
ulceram boca e ouvidos
por isto poucas e medidas
palavras são ditas no quarto.



Pela janela entra instrumentos
Facas- lâminas de puro sol
facas-sol esterilizadas
agudas, de corte limpo e reto

Precisas facas que retiram,
seccionam as sombras
reviram as vísceras-sombra,
as entranhas úmidas do quarto

Se a ferida escalpelada
tem ainda cor de sombra
é porquê engana o olho o escuro
alcatrão colocado sobre a ferida.

Após retirada, toda a sombra
tem seu couro estaqueado
raspado com vidro
posto em pedra hume ou sal.

Agora o sol não usa mais
seu tentáculo faca,
usa outro instrumento cânula
feito do mesmo metal sol.

E assim suga o que úmido
só após ser ressequida
a sombra é recolocada
por isto o seco dentro das gavetas.

E a estante, cadeira
o que madeira
tem aquele seco
acirrado e denso.

O demasiado seco
do lenho petrificado
Que nem mesmo inflama
Que não vive nem morre.



Nos pesa ainda sobre
os ombros se no quarto
desolado a gravidade
de outro mundo maior.

Estilhaça o que cristal
sorriso,amparo, afeto,
sobra no peito a pedra
resistente da solidão.

Transplanta em todos
um coração de náufrago.
transpassado de agulhas
amoladas em angústias.

E as pálpebras sentem
o gosto amargo nos
olhos, agora daltônicos
para tudo que seja esperança.

É febril, o quarto mas
não a febre da infecção
que mata por proliferar
por se exceder em vida.

O quarto tem a febre
ainda mais malévola
de Marte e seu rude
calor anti-séptico

Tem a esterilização
cuidadosa e tenaz
La não vive um germe,
la não vive o homem.

La há apenas uma
floresta de árvores
Sem folhas, sem galhos,
sem tronco, sem sombra.

De Solivan

11 comentários:

  1. Querido Solivan

    eu só sei que estou muito, muito feliz com a sua volta,
    E como as minhas palavras desapareceram,
    tomo de empréstimo as de Borges como espelho deste seu poema:

    "...Conheci o polido, o arenoso, o desparelho, o áspero, o sabor do mel e da maçã,
    a água na garganta da sede,
    o peso de um metal na palma,
    a voz humana, o rumor de uns passos
    sobre a erva, o olor da chuva na Galiléia,
    o alto grito dos pássaros.
    Conheci também a amargura
    [...]
    Da Minha eternidade estes signos caem
    [...]
    O rio me arrebata e sou esse rio.
    De matéria corrosível fui feito,
    de misterioso tempo.
    Talvez o manancial esteja em mim,
    talvez de minha sombra,
    fatais e ilusórios, surja
    [...]
    às vezes penso com nostalgia
    no olor dessa carpintaria..."

    (Fragmentos de "João I, 14" e "Heráclito"- Elogio da Sombra))

    Aí estão os dias, Solivan. E vc está. Vivaaaa!!

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  2. Epa: teve um problema de postagem num trecho:

    "talvez de minha sombra,
    fatais e ilusórios,
    surjam os dias..."

    Bem vindo, Solivan, que bom continuar a ler os seus pergaminhos!!

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  3. que poema lindo Neuzza,Borges foi,é e será
    um dos grandes

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  4. Verdade, ele é grande. Vc é grande com seus versos e seus tonéis raros aveludando o vinho fino da poesia.

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  5. "um branco osso de
    mar descarnado de água"

    Soli...Senti uma sede depois que li este poema. Ele é tão real. A impressão que tive ao ler pela primeira vez foi a de uma controvérsia, mas como te falei que iria ler com calma, voltei. Maravilhoso, acho que um dos melhores poemas que escrevestes. Que o olor das ervas e o solo fértil adentrem o peito deste poeta! Amei de verdade.

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  6. obrigado Mari,foi um poema complexo de escrever,
    foi difícil doma-lo,
    mas prazeroso como poucos,apesar do tema arido.

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  7. Thadeu isto que eu chamo de surpresa.
    Obrigado pela sua visita cara.
    um abraço

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  8. Solivan, Solivan, vc está cada vez melhor, afiadíssimo, causando terremotos,abrindo precípios com seus poemas. Esse, me deixou sem fôlego!
    Bravo! adorei
    um beijo carinhoso

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  9. Ah, senti falta da ilustração que sempre acompanha seus poemas. Gosto tanto delas!

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  10. obrigado obrigado Beatriz,me sinto alimentado
    com seu comentário,que bom que gostou.Esta postagens não coloquei uma ilustração porque o Cabral não gostava de delas.
    e árduo abrir fendas e tremores com minha pá manual.
    um abraço carinhoso

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