quinta-feira, 28 de junho de 2012


A Casa Azul
da curandeira Iracema

Entre outras iguais
cercada por um colar de velhas ripas
quebradas, caídas, apodrecidas
com manchas brancas de calfino e fungos
qual uma velha dentição
com um jardim
miscelânea de flores, mato e lixo
bordados sobre um quintal de terra.
Ao fundo
de uma vereda
ladeada por tufos
de grama preta e pedras
vejo a casa azul.
Entro e o sol
estende seu calor preguiçoso
e amarelado pelo chão
e sobre ele
hortênsias, guinés e capim
estampam seus sombreados escuros
e o caminho
torna-se um tapete tigrado.
Enquanto ando
vejo a terra tecer azaléias
reger em acordes lácteos
e dourados esparsas margaridas
e o aroma da cidreira
tinge o peito de um verde suave e doce.
De um canto pedregoso
vem o amarelo ofuscante
de muitas rosméias, são quase lâmpadas
(são nessas flores que os pintassilgos
alimentam a cor de suas penas)
entre elas
alguns picões e guanxumas
sacos de supermercado, frascos de Q-boa.
Olho a buganvília
presa no pilar da varanda
caem sobre o beiral num arco celeste
cintilações violetas
sobre um mar de folhas verdes.
À frente da casa
velhas roseiras vermelhas e brancas
projetam suas belas sombras,
arabescos florais
na parede azul
sobre os veios
e nós de araucária.
Um pé de jasmim
plantado no centro de um pneu velho
chama-me pelo perfume, sensualmente
minha alma vai até ele
segue descalça
pelo solo quente
abraça-o nu
e beija, a língua escandalosamente
em sua flor branca.
Eu sigo reprimindo meu desejo
sento-me num banco de tábuas
na varanda.
Varanda que mantém a manhã
por todo dia, cativa em seu interior
guarda-a fresca e límpida
com um sabor térreo
como cacimba
faz com a água.
Presas na parede azul
samambaias profusas
caem em delicadas rendas pelo ar
feitas pelas mãos simples
das raízes a colher o verde da terra
para suas majestosas jubas
plantadas em coloquiais
galões de tinta
e latas de leite em pó enferrujadas.
Latas
que também dispõem-se como favelas ou cemitérios
ao chão, indisciplinadas e abundantes
com begônias, guinés, rabos-de-gato
e avencas.
Potes plásticos
com dedos-de-anjo e violetas
pousam em cima
de um baixo muro lateral
e ao seu lado
está uma bacia de alumínio
cheia de mandiocas recém colhidas
ressentindo a terra.
Pelo lado de fora, junto ao tanque de lavar roupa
num canteiro de tijolos
estão Espadas-de-São-Jorge
e arqueados amores-perfeitos,
no chão úmido e esverdeado pelo musgo
rabiscados pelos prateados passos
das lesmas.
No pátio estende-se
o colar de contas
o sorriso colorido
de um varal de roupas
até um abacateiro.
Da área, por entre as plantas
penduradas no teto e no muro
enxergo os canários-terra
presos em suas gaiolas
no tronco de um cinamomo florido
com odor de mel, mel de mirins.
Num estranho retorno
aos galhos que sempre foram dedos
de uma mão aberta,
os canários cantam na árvore
e a música
os tornam polidos e radiantes,
seus pequenos corpos
cintilam orgulhosos amarelos
seus sons douram meus ouvidos.
Fico nessa varanda
entre
o aroma pungente branco do jasmim
e o canto dos canários
as samambaias, o jardim
a sentir-me
dentro
da música da poesia
enquanto espero reverente
pelas bênçãos de Iracema.
Entro na casa azul
pela escura e enfumaçada cozinha,
perfurando a sombra
dedos de sol penetram pelas frestas da parede
dentro deles brinca a fumaça
sangue etéreo em circunvoluções.
O indicador
passa rente
às cascas espiraladas de laranja
que secam
em cima do fogão à lenha,
lançando sobre elas
asteriscos de luz.
O anelar
estilhaçado cai
sobre as garrafas que luziam
e faz nascer florzinhas de macela de luz
frágeis a tremeluzir
nos cascos
cheios de ervas, raízes,
óleo de capivara e babosa
em cima da prateleira.
Entre as garrafas
a imagem de São Jorge.
Passo pela sala
a parte mais clara da casa
com seu sofá de corvim vermelho-marmoreado
rasgado, a espuma dele aflora
rosas sujas e poeirentas.
Atrás do sofá um quadro de Noé
e pôster do Grêmio campeão gaúcho.
Na estante
antiga, escura, riscada
fora do prumo e de portinholas sempre
semi-abertas
bibelôs e fotos ginasiais
(com globo e livro abertos)
sobre crochês vermelhos,
violetas sem flores
em potes de margarina
ficam uma na frente
de cinco livros vermelhos
empoeirados
e outra, em cima
da velha televisão.
Ao seu lado
há num vaso cerâmico
decorado com flores esmaltadas
desbotadas rosas de plástico.
Do rádio
saía a voz grave de um programa
policial.
Distraio-me ao olhar
pela janela que dava aos fundos
da casa
via ramas secas de mandioca
e sobre elas
sabiás e pardais
frutos livres que vêm e vão.
Após eles
vestem toda a parte de trás do lote,
as folhas do chuchuzeiro
iguais vinhas
cobrem a cerca de arame com suas escamas verdes
e como um menino
brincando num quintal
sobe nas tábuas velhas de uma patente e
no pessegueiro.

Na moradia, não havia portas internas
passa-se por uma cortina,
de tecido grosso e encardido, com estampa de bosque
que cheira a incenso
impregnada de pó, igual a asas de uma mariposa.
Entro às cegas
pelo altar zinabreado
respiro
o ar pesado das orações,
sinto um odor resinoso
sabor de prata enegrecida
cheiro parecido com o das velhas igrejas.
Sento-me com veneração
em uma cadeira de palha trançada
e as rezas de Iracema
murmuram como um riacho
em minha alma
o delicado vento
que fazia suas mãos inchadas e morenas
ao fazer o sinal da cruz por dez vezes
passam pelo meu rosto.
Segura arruda
e um terço gasto feito de contas azuladas
(de sementes azuis colhidas na sexta-feira santa
à beira de um córrego
de um arbusto chamado Lágrimas de Nossa Senhora).
Escuto somente a mística de
suas palavras rasuradas, incompreensíveis,
enquanto seus dedos pousam
sobre minha cabeça,
sinto o calor suado das palmas brancas de suas mãos
morenas
na minha fronte.
A sensação lembra-me folhas de hortelã
porque o que penetra em minha têmpora
é um carinhoso frio verde.
Olho seu altar escuro
no centro, num antigo calendário amarelado
do Sagrado Coração de Jesus
em cima de uma mesa pequena
sobre uma toalha rendada
a imagem de Cosme e Damião
à frente balas, como oferenda
outra de Iemanjá, com o olhar altivo
manto azul-celeste
cheio de estrelas do mar.
Ao meio das imagens
no copo d’água
três ramos de samambaia, uma rosa
e um jasmim.
E saio
da casa azul,
da sua penumbra interna
nos meus olhos, na minha face
sinto o calor e a claridade branca
ofuscante do quintal.
O sol me acaricia.


De Solivan

2 comentários:

  1. Como isso me lembra da infância, de qdo a mae nos levava pra benzer de alguma coisa que eu hj nem sei se realmente existia, mas que tinhamos fé que ficariamos bem depois de benzidos.

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  2. Delicia de poema, posso sentir todos os cheiros e cores...

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