sexta-feira, 25 de setembro de 2009

A desconstrução do boi

Matar
o martelo afaga a testa do boi
bem entre seu olhar negro e bondoso
cheio de estrelas brancas
e a faca procura um resto de vida
escondida
dentro do seu pescoço
e como um sopro frio
apaga as estrelas assustadas
no olho do boi.
O corte tem um gosto
oxidado e gelado da lâmina
língua abusada metálica dentro da carne.
Do talho
ubre de ordenhações rubras
saem abstrações brutais
de um coração se debatendo
caem vermelhos, brilhos, lampejos
sobre o alumínio
com digitais e moscas verdes.

Estremecimentos
o sangue abundante acomoda-se
aninha-se
transborda pastoso, calmo.
Morte
ainda sai um colar de rubis
no fim lágrimas de um olho vazado.

Estaquear
erguer no galho da cabriúva
a rês de cabeça para baixo
quatro cascos suspensos
pelas pulseiras rudes
de corda de sisal
estranha flutuação de alma


Corear
arrancar o branco
colorir num processo inverso
de retirar
deixá-lo rascunho
de boi a crueza de um esboço
vermelho, inconcluso
riscado de nervos brancos.
Pendurado
ante o matagal enrediço rasurado de inverno
a suave sombra dos ramos
parece arder sobre a cor carne-viva
como mão áspera sobre queimadura.

Decepar a cabeça
pô-la sobre a mesa
o sangue procura os veios das tábuas.
Um corte no abdômen
abre-se num fácil sorriso
e vomita intestino pardo e fedido.
Na bacia.
após o parto
o coração dorme
sobre as vísceras.
O boi morto ainda adula
seu odor de presa
deixa o ar quente e ensebado
e espalha felicidade
moscas varejeiras zunem
coroam os coágulos
como esmeraldas ávidas.
O rabo do cão sorri.
Um menino, pernas e braços finos
magro de barriga grande
olha o pai
com um sorriso atento,
dentro dele uma alegria inocente de oncinha.

Carnear
a faca apaga
os membros dianteiros
deixa no lugar a terra que se escondia
atrás deles.
Abre-se a espinha.
Os posteriores ficam balançando enforcados
após recortados,
retirados
restam dois cascos, dançarinos
de um boi invisível, desconstruído.

De Solivan

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