sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Mudança

Para meus avós maternos.



Meu olhar infantil vê subir
uma cama de casal
com um lado rude outro bondoso,
mas o desgaste dava-lhe unidade.

Um berço, duas pequenas camas
que recebiam toda noite
trazidas por um colo
delicadamente para não quebrar o frágil sono
o sagrado relicário
de três crianças que já continham sonhos.

A cristaleira anciã
gemeu uma frágil sinfonia de vidros
quando foi erguida
pareceu cheia de pássaros canoros.
E o ano de 36 guardado em suas
gavetas tinha um hálito antiquado.

O relógio que marcava
as horas líquidas de segunda à sexta
as horas gasosas das manhãs de domingo com missas e
as que corriam pastosas nos domingos à tarde.

A cozinha americana,
velha precoce
era o sacrário das bolachas
tinha furtivas marcas de mãozinhas infantis
que a coloriam como um sorriso
numa face.

A singela mesa sobre a qual
todo o meio-dia
ouvidos engoliam gritos sem mastigar
durante as refeições
subiu encolhida, cabisbaixa, canina.

Já a mesa da sala
mais empossada, ergueu-se orgulhosa,
era a mesa das ceias
e nos domingos tinha sobre ela
o leque das cartas de baralho.

Uma caixa
com uma
foto-pintura emoldurada do casal.
Um crucifixo gasto pelo vento
das ave-marias
e um terço pelas ondas do polegar.
Um bule que acordava a todos
com o canto de seu odor de café.

Uma bicicleta
com feridas de ferrugem.

E por último um cão
seu olhar, dois pingos de mel
adoça o amargor amadeirado
incrustado nas línguas.

Na ponta do meu braço erguido
o trapejar de um adeus.
Atrás de mim
uma casa vazia.
A fruta cristalina de meu olho.
nasce
esmago a lágrima
(tem uma oleosa consistência
de saudade e solidão).

De Solivan

3 comentários:

  1. Solivan, que linda homenagem vc fez para seus avós. Ficou lindo, delicado, noltásgico!!

    Aplausos pra vc!!

    Beatriz

    ResponderExcluir
  2. só corrigindo

    nostálgico!!

    ResponderExcluir
  3. amo este poema, Solivan
    minha avó, Gercina Placidina
    foi a pessoa que mais me compreendeu

    ResponderExcluir