sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Zé Limeira e o diabo

Dentro do ano de 1975
Zé Limeira
despediu-se
de seus filhos morenos
com brincos de ranho no nariz.
Eles brincavam no quintal,
sob a sombra da casa,
ossos e gravetos
eram boiadas e cercas.
Estavam ao lado de um cão magro
enrodilhado como caramujo,
todos rodeados pela caatinga.
A mulher da janela
ergueu a mão, porém mais parecia tremer que
dar adeus,
logo voltou a varrer.
Estavam todos acostumados por
herança das gerações de retirantes
anteriores a despedidas.
Zé Limeira
começou sua viagem
pela estradinha longa, reta e empoeirada
entre arbustos secos ásperos e emaranhados.
Corria quando menino
nessas matas de arame farpado
como delfim salta o mar.
Deixava a casa,
mas sua imagem ia dentro dele
forte, se a evocava
trazia a mesma segurança
que sentia ao tocar seu amuleto.
Parecia acariciar
a casa preguiçosa
a porta sempre aberta em bocejo,
as paredes quentes de barro avermelhado
ressequido e rugoso.
Tato e aparência de casca de árvore
sempre envolvida por um ar parado ressequido,
num silêncio denso,
engarrafado dentro deste silêncio morno
moscas de zumbido sonolento.
A lembrança da casa era seu oratório
onde amorosamente colocava sua família.
Um passo após a linha do horizonte
a caatinga clareou.
Tudo pareceu novo,
estranhou aquela paisagem tão familiar
de repente mais brilhante, viva
sua alegria de viajar
incidia como um sol,
deixava tudo mais alegre e claro.
O ar seco empoeirado
filtrado por suas narinas felpudas
caia limpo, fresco em seu pulmão
como água de nascente.
Um pé de espinheiro
projetou na parede
interna do osso da testa
as duas aparições que teve.
A primeira,
quando era criança com suas duas irmãs
atrás da casa,
depois de sua desfolhada plantação de mandioca
no começo da caatinga.
Apareceu a eles uma Nossa Senhora de Aparecida
de gesso
suspensa sobre os espinheiros
aquela gigantesca estátua
nem arqueava os raquíticos galhos,
parecia
uma leve mariposa pousada.
Nossa Senhora de gesso entre nuvens de gesso
pairava sobre o espinheiro
negra, seus olhos parados pintados de azul celeste
mãos em oração
só a boca autômata, movia-se
com voz gutural pastosa
vinda de uma garganta de gesso.
Os bodes passeavam à frente dela
ruminavam folhas, calmos.
Zé Limeira e suas irmãs
não escutaram a mensagem
após os olhos arregalados de medo
captarem tudo, rápido e nítido
e o susto estampar e fixar as imagens
em suas almas.
Um temor tosco de lavrador
em frente de um rei
fez todos fugirem.
Na segunda aparição
anos depois
vindo embora, à tarde
em dia de São João
a caatinga estava avermelhada
sol forte
Zé dançava sozinho na estrada
os pífaros ainda soavam nítidos,
como um radinho de pilha
dentro de sua cabeça
quando viu numa encruzilhada da estrada,
Padre Cícero Romão
também enorme
estampado numa folha calendário
tentou falar com Zé.
Este se conteve o máximo que pôde,
mas o medo dentro dele
tinha vontade própria
mandava em suas pernas
fora possuído pelo medo,
seu medo mais parecia uma entidade
que um sentimento.
Tentou manter-se
olhou para baixo
tentou se concentrar nas datas
seus olhos no desespero
acharam com mais facilidade
os feriados em vermelho.
Procurava distrair-se,
não ousava encarar os olhos do padre,
mas nada adiantou.
Suas pernas possuídas correram
era tanto medo que por mais que corresse
parecia não sair do lugar
depois, sentou-se e acalmou o seu próprio coração
com palavras de mãe para um filho assustado.
E fez um diabinho de madeira
pintou de vermelho, pôs em uma garrafa
se levasse o amuleto
na algibeira de couro e odor de cavalo,
nas missas
benzedeiras e enterros
acreditava que não veria mais santos.
Assim caminhava distraído
numa visão bifocal
via lembranças
coloridas do passado
e a estrada no presente.
Mas as recordações que mastigava
salgadas, cheias de emoções
foram engolidas
a caixa craniana escureceu
ficou somente o que enxergava
quando chegou à BR.
O sempre, mais estéril, presente
geralmente insosso
que só cria sabor
depois de ficar de molho na alma.
E continuou andando no acostamento
seguiu o asfalto como quem anda à beira de um rio.
Como única distração acompanhava
a sua sombra,
movendo-se a sua volta, lentamente
como um ponteiro de relógio
enquanto andava
e após passar por
dias secos, como carne de sol
dias amarelos, desidratados
de raios solares ressequidos
e noites estreladas
de receber estilhaços de nuvens pelo corpo
e beber na palma da mão pedaços de nuvem,
Zé Limeira
nem sente
seus pés escorregarem no suor
das sandálias,
não percebe
os automóveis
que começam a passar rente
em filas coloridas
como bandeirinhas de São João
e os caminhões
que urram e sibilam
estremecem a terra
e bafejam um sopro quente
de borracha e diesel em seu rosto.
Apenas recordações rodam
como um carrossel
um cavalo após outro
cada qual com uma cor, histórias
imagens e sentimentos diferentes.
Paravam ao sabor da sorte atrás de seus olhos
passagens de sua viagem
agora sem ele notar quase no fim.
Primeiro
da sua felicidade
numa pequena rodoviária
das quatro árvores a sua frente
com pulseiras de pedra caiada
do longo pátio, lago de terra
areada e ondilhada
onde flutuam tufos de gramas esparsas.
Nas paredes e vidraças sujas
marcas de pés e mãos
desenhos de caverna
os vidros embaçados
de incrustações de saliva ressecada
das respirações.
Pessoas morenas
andam, comem, dormem.
nos bancos
numa fila hospitalar.
Ouve-se
tosses, conversas, suspiros, gritos, risos infantis
e murmúrios
exalam um cheiro de ansiedade
junto do suor
aguardam inquietos
a viação Careonte.
Lembra depois
da sua alegria infantil
contente só por ver as luzes, cores e movimento
ao conhecer a grande estação rodoviária
com odor de vômito
de estar no meio da correnteza
incerta das multidões,
de seu encantamento
na vitrine
da loja de artigos mágicos
truques de baralho, canetas que desaparecem
chicletes que deixam a boca azul,
imitações de fezes, máscaras de monstros.
Em outra,
de lembranças da cidade e brinquedos,
da mercearia
com redinhas de náilon amarelas expostas
de laranjas ou maçãs,
a gôndola cheia
com frascos plásticos de refrescos
imitando framboesas em azul,
revólveres vermelhos,
elefantes amarelos
causavam a seus olhos
fascínio e avidez de jóias.
Se algum dia,
estivesse na frente de um quadro colorido
sua mente se lembraria
desse momento, desse deslumbre.
Da fome
devido ao cheiro dos pastéis
presos num aquário gorduroso
da lanchonete.
Da sua ereção ingênua na frente
da banca com revistas eróticas, gibis
e palavras cruzadas,
de ver no segundo piso
os ônibus entrarem e saírem
das gengivas das plataformas.
De estar no ônibus
com o mesmo odor de vômito da rodoviária
e assistir à janela
que lembrava uma televisão
a caatinga transformar-se em cerrado,
as vilas
passarem em rápidas manchas coloridas
a tarde incendiar-se
numa monumental abstração
sobre o azul
amarelos e vermelhos orquestrais
um Kandinsky momentâneo
pintado no seu vidro rasurado com impressões digitais.
Depois ir de encontro
à boca da noite,
ver atrás das negras silhuetas recortadas das árvores
um fundo gris enevoado.
Olhar as galáxias das cidades distantes
cintilantes cravejadas no meio da escuridão
depois a casa solitária, misteriosa à frente
sua curiosidade de saber quem mora nela, que fazem
quem lava e estende a roupa
como se chama o cão.
O motor ronronava uterino
seus olhos sonolentos
nublava
e raiava com pétalas agudas
igual ao imaculado coração de Jesus,
as luzes amarelas das janelas
de um casarão entre grandes mangueiras.
Adormeceu quando a paisagem
era completamente negra
submarina.
O ônibus ia imerso, solitário
suas luzes tateavam
no mais abissal e escuro fundo de oceano
visão de seu perispírito
nadando na estratosfera.
De acordar
já atravessando periferias
de ver maravilhado os prédios ao longe.
Lembra
que descansou
em frente de um bar
com hálito de cerveja saindo
de suas boca-porta
de ouvir o barulho gorgulhante
das bolas de bilhar
sendo engolidas.
Que pousou
em postos de gasolina
entre caminhões
e descansou
à sombra de uma placa
de sinalização amarela
e adormeceu, à tarde
ouvindo o trânsito
sobre a braquiária poeirenta
da beira da estrada,
vendo o céu azul
raios brancos de sol
atravessavam a fresta de seus dedos
em seus dedos floresceram estrelinhas de luz.
Da cabeça cheia de água
por causa da sede
enquanto andava
cheia de água límpida
torneiras, cacimbas
copos brilhando como diamantes.
Zé Limeira pensava em tudo isso
quando viu uma placa verde em formato de portal:
Bem-vindos a São Paulo
e ergueu os olhos e vislumbrou assustado
com o mesmo sentimento
de quando viu a enormidade verde, temerosa
do mar pela primeira vez,
as favelas
que subiam e desciam morros
numa planície de casebres
e depois uma longínqua e enfumaçada
linha de horizonte inteiramente feita de prédios.
Parou inquieto nervoso
sentiu fortes vontades antagônicas
queria voltar e seguir
indeciso, perdido
perdeu sua certeza
que era sua bússola, sua segurança.
Desorientado
sentou no acostamento e esperou
sua alma acalmar e se decidir
o asfalto fervia, soltava seus vapores invisíveis
e sufocantes,
o lixo das favelas cheirava
como um arroto
o trânsito intenso, rente
dava a mesma vertigem
o mesmo medo da morte
de estar à beira de um precipício.
Foi quando o diabo apareceu
um diabo nu, em vermelho vivo lustroso
como madeira polida, lambuzada
com óleo de peroba
seus cascos fizeram um barulho
de tropel de cavalos
ao caírem no acostamento,
Zé sentiu um cheiro
que sentia quando disparava
sua espingarda quarentinha
e viu-se, face a face, com o capeta
de guampas lisas, pontudas,
negras, compridas, luzidias
como berrantes.
- Entra. - Falou o diabo,
e ofereceu suas tentações
com uma voz radiofônica de um programa policial
amplificada e grave
e gestos de garçom,
apontando para a auto-estrada que ia dar
em São Paulo.
O som retumbou dentro do peito
de Zé Limeira
o medo
rompeu os comandos medulares
ficou paralisado e mudo,
pássaro hipnotizado por cobra luzente.
O diabo não é condescendente como os santos
e sem desaparecer
esperou uma resposta, aguardou até que
Zé, trêmulo começasse a falar
com a cabeça baixa
gacarejantes sons repetitivos
sem poderes para dizer não
como se tivesse uma arma apontada para sua cabeça.
O capeta
diluiu-se no ar
só após o contrato
ser tremulamente assinado
então, Zé jogou
o diabinho do amuleto fora
preferia ver santos
e retornou para a casa.
Pode ter vendido a alma,
mas não sua vida
sua vida ainda
pertence a ele
e continuou
a viver com singeleza
até ser recebido
em um auto pela Compadecida.

De Solivan

7 comentários:

  1. VTNC, se o texto não fosse tão bom e envolvente não teria lido porque é muito looooongo.
    Abrax do seu amigo MiG

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  2. Finalmente apareceu Mauricio,
    e sempre bom ter os amigos por perto.

    Solivan

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  3. a descrição do que ele via nas vitrines é muito envolvente, Solivan
    P cheiro dos lugares, as cores, os barulhos
    E esse desenlace...vendeu a alma e saiu limpinho, salvo pela Compadecida
    grande!

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  4. Neuzza, é cheio de imagens tiradas da rodovia de Curitiba, quando adolescente eu adorava passear pelas lojinhas da parte superior,das bancas de revistas,
    tudo era novidade para um adolescente.
    Como era bom visitar Curitiba, tudo era novo, ia com meu amigo Mauricio que escreveu acima.
    Solivan

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  5. Solivan, que texto sedutor!!! Não consegui parar de ler até terminá-lo.E valeu a pena!

    beijo

    Beatriz

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  6. Lindo seu poema, Sulivan. Gostei de ler.
    Aproveito para te desejar 365 dias de Feliz Natal, ou seja: muita Paz, Luz e Amor!

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  7. oi lucy que bom te ver,obrigado pela sua visita,para você também um feliz natal
    cheio de felicidade.

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