sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Prefácio do encantador de serpentes

Os Poemas de Solivan Brugnara

A poesia de Solivan Brugnara é diferente, especial, magnífica. Mantras, orações, blues elípticos? Tudo a ler. Também aqui e acolá tangerinas, pinturas, raios fúlgidos, sementes, frases para chaveiros, venenos gozosos. Diz ele: “Buda descansou à sombra de uma árvore/A árvore morreu/Mas a sombra ainda está lá” Taí um fragmento-apresentativo da poética de Solivan Brugnara. Já pensou? Algo zen, close translúcido. “Sou poeta porque gosto de lamber folhas em branco/Lembra leite materno”...salpica ele. Página de rosto.

A poesia de Solivan Brugnara fala. Leva fé e bagagem. Como tudo é matéria prima para o fazer poético, os poemas dele dizem de uma ótica extremamente sensível. E ele pensa o mondo cane para redefini-lo sacro-sanscrito, finamente espiritual, em artes e criações purgando o verbo viver por um prisma humanista, contemplador, melhorado, claro. Essa é a dele. Poesia é tudo o que move. E o que verte sob o olhar do artista ourives da palavra fazendo o diferencial.

A poesia de Solivan Brugnara é o que abrange o humanus mais infinitalmente telúrico no macadame de si mesmo. Fios desencapados da poesia pura e cristalina, na rota de fuga (ai a espécie!) feito um perene tear de granizos. Sim, somos todos serpentes (seres-entes) encantados na sua confeitaria de açúcares díspares. Nuances, contradições, ambigüidades, toleimas. Ele dá uma releitura de um mundo pueril no aprisco de suas inteirezas. E o nosso mundaréu de uma selva de cimento armado perdidinho. Ele, feito um sábio, um monge, recupera o aproveitável, destila, ventila, dá-se. Há encantários também. Quase salmos.

A faca cega acordando, a mão trazendo o fotograma, a pincelada magna meio mantra, meio oração, meio moendas e engenhos d´almas. Foca sentidos. Coloca-nos frente a frente com véus indizíveis. Ficamos molóides quando o lemos. Voltamos para dentro de nós mesmos, e só nós sabemos o que é estar lá em revisitança. A sua fala interior, de uma maneira ou de outra, rebusca coisas que perdemos atrás de uma estrada de tijolos amarelos. Ele recupera andanças e paisagens, feito uma enorme roda-cotia de sabenças.

A poesia nesse diapasão, mesmo assim, ainda às vezes transgride, fragmenta matizes, adota ritmos, quebra-os, desmonta andaimes íntimos de paisagens perdidas nas paredes da memória. Meio Belchior, meio Gonzaguinha, meio Tom Jobim, ele dá seu testemunho bem chão que é a nossa cara. Na enxovia do poema, a aleivosia de fluxos recorrentes (do in/consciente?). Prosopopéias e rapapés. Sal e vinagre também. Talvez mundos e fungos, ícaros e ácaros. E logo desperta a consciência inevitável de nosso desencarrilhamento existencial. Estamos todos perdidos?

E o lado sentidor do poeta? A mão hábil, a olaria do ser, a sofrência e a perda. Rocambole de idéias. Cortes. Nódoas da vida, nichos dela, jazidas de construções epigramáticas. Para o poema, tudo é; vetor e orgânico, ralo e lirismo, organismo sensorial de entregas e resultantes diletas de. Criar é se afirmar como ser. A coletânea O Encantador de Serpentes mostra o poeta em fibra e lucidez, recodificando signos ficantes de um mundo insano. Pois não é que ele tem jeito próprio, peculiar, estilo e vertente. Vida louca? Olha o rock do Cazuza.

Um peregrino que sonda o calibre das palavras, os flancos delas, os cabimentos e os universos em movimentos. Compõe poemas. Edifica, transmuta, corrói quando soa feito um templo nas nuvens e deposita-se num mosaico de letramentos e livramentos. Arames da memória, pensares (talvez por falta de peças de reposição para o ser tão pouco humano nesses tempos tenebrosos), torpedos poéticos com tons de cítaras, harpas, tudo num embonitamento fora de série. Quando não irônico ao pé da letra.

Foi o que li/vi (senti) de muito gostosamente lê-lo nessas novas paragens. Todo poeta res/pira pelo círio ardente de suas próprias criações-colheitas, em livros-testemunhos. Os loucos herdarão a guelra, numa futura Atlântida pluridimensional entre pirâmides marinhas, oásis cósmicos, cavaleiros trovatores, campos de lavandas náuticas. O que virá do passado nos surpreender no quartzo-róseo do futuro? Poetas dão testemunhos de cismares enluados, radares edificantes, revisões e tabuleiros, incensos e recolhimentos, pois na versalhada do viver/crer/ser, quer no baratinado surgimento das idéias, quer entre cabides de pregos, sempre haverá a voz que canta no deserto, a voz que soa na montanha, a voz que edita no mosteiro, a voz que imprime em livro os cânticos dos verdes campos do Paraná.

Solivan Brugnara dá seu testemunho em alto estilo. Sensível e conferidor de resultados do verbo viver, mostra asas de resistências na sensibilidade aflorada, dentro de sua ótica madurada a depurar poemas muito além dos estúpidos que fermentam impropriedades. Ele sabe o que faz. Ele faz bem. Ele é do ramo. Árvore que viça poemas. E assim se enlivra, livrando-se do que cria muito bem feito um liquidificador do que capta e dilue em versos, dizendo mais coisas maravilhosas dessa vida do que nós mesmos captamos na correria da sobrevivência sacrificial. Afinal, o sol é grátis, a poesia é seqüela de labirintos, e escrever é dar um registro de luz. Solivan Brugnara pintou mais um livro.
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Silas Correa Leite
e-mail: poesilas@terra.com.br
Site pessoal: www.itarare.com.br/silas.htm
Autor de Porta-Lapsos, Poemas






“Um pacote congelado cheio de asas/quantos vôos mortos”

Solivan Brugnara escreve como quem parece querer fazer pacotes congelados de palavras, esmagadas, amarfanhadas, constituindo miscelâneas cuja característica é fugir a um estilo único e agir como uma ventosa que suga todas as possibilidades de expressão, sempre ainda insuficientes, afinal o sentido da vida e, em última instância, da palavra, é inalcançável, ainda que se possa percorrer o caminho da sua busca.
Por isso vai de uma descrição bucólica de uma paisagem a uma cena com meninos simulando tiros com os dedos em direção a um avião – será que eles querem mesmo derrubar aquela ave? aquela paisagem, que dor é aquela, exposta nas cores, nos detalhes obsessivos?; vai de um poema que se derrama parecendo por um momento interminável em palavras – onde ele quer chegar? - a um poema visual que logo contradiz a simplicidade de forma/conteúdo típica desses poemas para se somar a outros recursos como se fosse um baralho de palhaço – aquele cujas cartas são interligadas para que o jogo não seja o que se espera, mas outro; vai do panfleto político transformado em máximas de uma frase a pautas musicais por ele mesmo compostas, assim como desenhos que transitam de uma aparência naif a uma crueza cortante que dialoga comVan Gogh, todas formas de representação de um mundo globalizado visto de um lugar rural, no interior do Brasil, típico como quase tudo neste país em que agricultura tem o mesmo sentido de cultura.
Mas ao olhar desse que escreve isso não fica barato, pois o mundo rural é descrito com crueza crítica, em pinceladas secas e ao qual se agregam sentidos estranhos que o tornam, por isso, peculiar: “(...) Quero-quero nos potreiros. / Cinqüenta alqueires gramados com soja/ E um pinheiro solitário no meio./ Cinqüenta alqueires de terra arranhada pelo arado/ E um pinheiro./ Oitenta alqueires de soja, cem alqueires,/ E um pinheiro (...)”.
E é na regularidade da paisagem e, por extensão, da descrição poética dela, que nos deparamos com o inusitado que quebra a expectativa e faz peculiar a poética, um centauro no meio da plantação: “Me cumprimenta do soja,/ Como alguém com mar na cintura,/ Lembra um centauro, é só meio-homem/ O resto plantação”.
Como a arte não escolhe lugar, está nos mais improváveis, como nesse homem “com mar na cintura”, o soja; como Miró encontrado numa joaninha pousada no indicador; ou na constatação paradoxal e agônica de que é impossível saber a hora numa relojoaria.
Assim, nesses poemas/pacotes de palavras congeladas, parecendo asas, esse que escreve parece lamentar o tempo todo “quantos vôos mortos” estão à vista, entregando ao leitor o estranhamento, função poética elementarmente máxima, que não deixa na mesma aquele que o lê.

Ademir Demarchi, escritor, editor da revista de poesia BABEL
revistababel@uol.com.br

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