sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Hotéis

1. Porto Alegre

Segundo andar,
um bucolismo urbano
me acorda
sempre muito cedo
gosto de ver da janela
a manhã
escavar a noite, retirar as sete camadas atmosféricas
de escombros escuros
dos nossos ombros,
ver a claridade lavar, de cada canto, o negro.
Os prédios e ruas solitárias
surgem suaves frescos e orvalhados
o semáforo troca suas ordens de cores simbólicas
para ninguém.
Olho para os postes elétricos
numa procissão silenciosa
suas luzes a esta hora apenas aureolam
as lâmpadas
e não se estendem mais num luminoso retalho âmbar
sobre as calçadas.
Ouço do âmago de uma árvore
os pardais-teclas cantarem quando os dedos
[da manhã tocam neles.
Os sons dos pardais cintilam em meus ouvidos
em multidões de estrelinhas de prata agudas
sobrepostas em escamas cintilantes.
Na rua
há sempre dois ou três transeuntes
personagens que só aumentam a sensação de solidão
parecem bibelôs sem vida
desenhos de uma lição de perspectiva
apenas peças, objetos para nos dar parâmetros das
proporções.
Os edifícios parecem mais impregnados de vida do que
as pessoas.

Leio por algumas horas
e desço à sala do café
de camarote pela vidraça,
vejo que os mesmos prédios cinzas
receberam mãos de luz e calor
uma pintura que estragou
a serenidade dos edifícios e ruas
deixando-os quentes, com ângulos duros
agressivos e claustrofóbicos.
Agora há cardumes suados pelas calçadas
e manadas agressivas de carros
rosnam raivosos, leões de circo
impotentes ante a luzinha vermelha
do farol.
Distraio-me com os automóveis
param e seguem
no ritmo de uma pulsação.
Desço as calçadas
no fundo abafado
do canyon de prédios.
Ao meu lado
sinto as íris gastarem os ponteiros dos relógios
e os ternos negros puírem os corações
farpas, limalhas de alma ficam no tecido
por isso este odor azinhavre
este gosto de prata enegrecida
nos quentes ternos escuros.
Sou o único a olhar para o alto
há sempre uma pomba ou avião
cruzando um céu canalizado
entre edifícios
sou novamente um menino encantado
com sua pipa.

De Solivan

Um comentário:

  1. Borges, me lembra Borges
    o delírio, o invisível, o pesar pelas coisas serem como são

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